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  • Foto do escritorRegina Miranda

AO LEITOR IDEAL

Atualizado: 8 de ago. de 2023

Na linha do signo de Saussurre e do dialogismo de Bakhtin, encontrei essa citação de Proust num texto sobre o leitor ideal: “a escritura é descrita como a tradução de um livro interior, e a leitura como uma nova tradução num outro livro interior”. Nesse mesmo texto leio um resumo sobre a ideia formalista: “leitor ideal é aquele que se curva à expectativa do texto, que seja passivo ao texto, lendo e interpretando fielmente o que está escrito”. É claro que essa leitura não me caiu ao colo assim, num dia ensolarado de verão como mágica. Até porque estou num domingo chuvoso, típico de Curitiba, cuja cereja do bolo é a situação de quarentena. Portanto, cenário perfeito para devanear sobre conceitos tais como esse e debruçar-se a reflexão sobre eles. Por mais infrutífera que possa vir a ser. Afinal, há que se ficar em casa. Há que se preencher o tempo com aquilo de mais útil e instigante que se encontre para sobreviver psiquicamente a esses tempos. Assim foi que busquei no google e rapidamente encontrei esses referentes para ilustrar meu pensamento.

Quando pensamos no conceito de leitor como o sujeito passivo e que irá ater-se restritamente àquilo que está no texto lido temos alguns problemas a resolver. Primeiro porque essa é, simplesmente, uma idealização de leitor. Esse pensamento enxerga o leitor, essa entidade ao mesmo tempo individual e coletiva, como um ser “não ser”. Como um (ou qualquer um) indivíduo sem história, sem subjetividade. O que, sabemos, pelo menos para os seres humanos, é impossível. Estou aqui pensando, será que os vulcanos conseguiriam ser esses leitores ideais formalistas!? Nós, pessoas, sempre temos expectativas. Nascemos com elas, acordamos com elas e, a partir delas é que vemos o mundo que nos cerca. Quando a gente fala que “gosto não se discute” é disso que estamos falando. Se a expectativa do cidadão quando foi assistir a “Infiltrado na Klan” era ver um “white savior” do personagem de Adam Driver, esse cidadão pode não ter gostado do filme, ou não ter entendido ou, o mais provável, ambos. Então não há leitor ideal nesses termos estruturalistas. Mas o que é um leitor ideal para quem escreve?

Se, por um lado, o leitor irá lê-lo com toda a bagagem de expectativas que traz em seu universo subjetivo, composto de anos de vida e de visões variadas de mundo, por outro sempre há algo que está no signo, à revelia do leitor, idealizado ou não. Sempre há, portanto, aquilo que o autor quis dizer, escrever. O problema é que a literatura não se faz na escrita e, sim, na leitura, já que uma obra nunca lida por ninguém não é literatura; é, outrossim, a manifestação do pensamento de alguém, um signo que não alcançou um significado porque não foi lançado ao mundo, à leitura. Nesse sentido, quando uma obra alcança um determinado nível de divulgação e, com ele, avaliações de sujeitos leitores obviamente impregnadas da subjetividade deles, temos a inevitável interferência do hype. Ele segue criando uma régua de qualificação para a obra “hypeada” a partir daqueles adjetivos que os leitores deslumbrados não conseguiram evitar de usar. Então, quando você ouve que um livro (ou filme etc.) é ótimo, maravilhoso, estupendo, você projeta nessa obra seu ideal de maravilhoso, estupendo, ótimo e, invariavelmente, há uma grande chance de o signo não corresponder ao significado individualmente estabelecido pelo sujeito leitor a partir de suas próprias conclusões estabelecidas, dialogicamente e por polifonia, a partir do hype a que foi exposto. Ou seja: se para o tal cidadão, um filme só é ótimo se tiver um ator como Adam Driver num papel de herói, salvador de uma sociedade racializada, protetor dos negros oprimidos e fracos... então para esse cidadão não há a mínima possibilidade de gostar dessa obra prima de Spike Lee.

Mas então quer dizer que um leitor ideal para qualquer escritor seria aquele leitor idealizado que chega a toda leitura como uma “tabula rasa”, disposto a livrar-se de toda subjetividade na leitura? Não posso falar por todos que escrevem. Mas não me parece interessante um leitor que fosse um vazio como esse leitor ideal do formalismo russo. Fosse assim, isso que escrevo aqui chocaria num vazio de sentido e nem com todo google do mundo faria sentido colocar Spike Lee, Bakhtin, Saussure e um texto contemporâneo sobre literatura, “tudo junto e misturado”. Porque evocar essa polifonia não faria sentido algum para um leitor que visse o signo como algo com sentido total em si. Referências só despertam sentido – significado – porque elas atuam sob e sobre a História da humanidade. Você só sente tristeza ao ler sobre a pandemia porque essa referência tem um significado vivo para você. Em sua vida de signo fora de um contexto, essa citação não teria valor nenhum, bom ou ruim (atenção, aqui eu cito Saussure, essa teoria complexa não é obra dessa humilde emissora de signos aqui). Então quero meu leitor totalmente louco de significados, perdido entre polifonias e dialogando loucamente com todo e qualquer signo que lhe apareça pela frente. Esse é o MEU leitor ideal.

Sendo assim, o meu leitor ideal é aquele que pode (e deve, se assim o for) muito bem odiar o que acaba de ler. Seja porque acha chato ler tanta referência teórica, seja porque é o tal cidadão que odiou “Infiltrado na Klan”, seja simplesmente porque me odeia e, portanto, odiará tudo que eu escrever. Ainda assim, é com esse leitor que posso dialogar e, assim, dar sentido a esse emaranhado de letras e signos que compõem um texto. Outro dia, no encontro do maravilhoso (note o perigoso hype aqui) clube de leitura Olhares, contei sobre uma crônica que escrevi há muito tempo e sobre como foi interessante notar que as pessoas viam nela coisas que eu não escrevi (ou que não intentei escrever). Significados que eu não projetei no signo estão lá, portanto. Porque se para alguém há aquele significado, é porque ele é uma possibilidade de leitura. É claro que não podemos confundir isso com casos de má interpretação ou de distorção de discurso. Há limites para a atribuição de significados a que o leitor tem direito. Mas a magia de escrever e ser lido, e de ler o que alguém escreveu para o mundo, para mim, está bastante nesse diálogo. O que mais me encanta num livro não é apenas o que o escritor quis nos dizer, mas aquilo que posso dizer a mim mesma a partir da leitura. E quando digo algo a mim mesma (não sei se para vocês também é assim, mas acho que deve ser), sempre o digo com minha própria voz, como minha subjetividade, com meu ser.





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