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RESENHA "A FESTA DA INSIGNIFICÂNCIA"

  • Foto do escritor: Regina Miranda
    Regina Miranda
  • 4 de ago. de 2021
  • 5 min de leitura

O que é insignificante e o que é importante (ou significante)? Quem ou o que define a linha entre esses extremos? Para Saussure, a língua é um sistema de signos formados pela junção do significante e do significado, ou seja, da imagem acústica e do sentido. Nessa perspectiva saussureana, toda coisa que tem um significado no mundo tem um significante correspondente a ele em nossa mente, ou seja, a ideia que fazemos da coisa em que se pensa. Talvez a diferença entre o que entendemos por importante ou insignificante, no mundo, seja o conceito que se forma para cada um no caminho entre significante e significado. Então, o quanto se pode definir um padrão para a significância ou não de qualquer coisa se a percepção dessa significância (ou não) se faz no sentido do indivíduo para o mundo, e não ao contrário. Quão significante é para uma criança o desenho que fez “de presente” para a professora? E o quanto esse mesmo desenho é significante para a professora que o recebeu pela primeira vez, e quanto o é da 158ª vez em que está recebendo? Essas questões surgiram, imediatamente, ao ler o título do livro de Milan Kundera: A festa da insignificância. Ora, a insignificância em si, das coisas, é algo que não costuma inspirar uma festa. Então o título escolhido por Kundera, invariavelmente, suscita a curiosidade e, de saída, já sugere que haverá algo de irônico na leitura a que se propõe.

Para quem busca nos livros o mergulho em universos de possibilidades narrativas de um enredo detalhado e expansivo pode se decepcionar e, que sá, ver insignificância na própria história que ali se conta, na vida das personagens que o narrador acompanha e de quem nos traz um curto lapso de tempo da vida. O livro traz um relato curto da vida de um grupo de amigos e o enredo se desenrola em torno da motivação de uma festa e de como se passa a vida das personagens envolvidas nessa festa, de algum modo, ao longo de alguns dias. Nessa narrativa, não se vê maiores detalhes da vida de cada um e o enredo vai se compondo na intersecção de pequenos capítulos que giram em torno de curtos interlúdios entre os jovens. A impressão é de que o leitor está “espiando” alguns momentos da vida desses personagens enquanto a festa que alguns deles organizam e outros esperam não ocorre. Desta forma, o autor faz com que essa curiosidade sobre o título, sobre a insignificância que se revelará na festa anunciada, vá aumentando na mesma medida em que o leitor busca compreender “para onde vai a narrativa” da vida daqueles personagens. Com a palavra “insignificância” num pano de fundo, óbvio, se vai escrutinando o texto e tentando entender para que lado o narrador aponta a tal insignificância ou significância de que o autor quer tratar. Afinal _ podemos nos perguntar _ para o que o autor aponta exatamente como insignificante? E, em contraponto, o que ele estaria indicando como importante? Nessa reflexão, ao longo da leitura, foi impossível deixar de lembrar dos conceitos saussureanos acima lembrados. E a constatação que foi se impondo a partir disso é a de que a dificuldade em perceber o que o autor aponta como insignificante (e, portanto, em contraponto, definiria como importante) vem justamente desse lugar constitucionalmente relativo que a significância tem no mundo.

De dentro desse lugar de leitura, chegamos ao final do livro e, esperando que na festa tudo se clarifique, novamente o autor nos “puxa o tapete” e fechamos o volume com ainda mais inquietude e nos perguntando, eventualmente: afinal, o que é insignificante para mim? Não me parece que seja objetivo de Kundera ditar o que seja insignificante ou importante no mundo. E, sim, ao contrário disso, apontar o fato de que a significância que cada um dá para qualquer coisa no mundo depende muito mais de sua história pessoal do que da importância (que é relativa) daquilo para o mundo. Assim é que Allan, logo no início do livro, dá uma importância desmedida aos umbigos das moças e ao fato de essa parte do corpo estar à mostra em contrariedade a outros momentos da história da moda. Mais adiante, o autor dá uma pista ao leitor mais atento de como o umbigo, para Allan, parece ser algo quase sagrado e, portanto, para ele está no território do que é muito significante no mundo. Para ele. Ou seja: o significado de o que é importante está muito mais no significante de cada um, quando olha para os fatos do mundo, do que no mundo em si.

Algo que alguns leitores observam sobre A festa da insignificância é que há poucas personagens mulheres e a elas não se dedica muitas linhas, diferentemente de A insustentável leveza do ser, por exemplo. Uma das poucas personagens femininas de que temos notícia é a namorada de Allan. Ela é criticada pelos amigos, mas Allan a defende sempre que isso ocorre. O mesmo Allan com quem Kundera abre o livro. Esse mesmo personagem termina o livro em diálogo com sua mãe (imaginária?) e se deleitando em ouvir, pela primeira vez, sua risada. Isso ocorre logo após a fala de Ramon sobre o valor da insignificância: “... é a essência da existência. Ela está conosco em toda parte e sempre (...) é preciso amar a insignificância (...) ela é a chave do bom humor…” E na insignificância daquele momento, as personagens conseguem encontrar motivos igualmente insignificantes (?) para sentir-se felizes. Por isso, penso ser válido pensar até que ponto a significância ou não que se dá a algo ou alguém está diretamente ligada a o quanto se fala sobre ela. Em uma narrativa curta e concentrada em poucos dias da vida do grupo de amigos, são poucas as personagens sobre quem sabemos algo para além dos acontecimentos aparentemente superficiais ali narrados. De Allan, sabemos algo muito íntimo, profundo e certamente muito significante de sua vida: sua relação com a mãe. A despeito do que o pai lhe conta sobre ela, Allan mantém uma relação forte com essa figura, coisa que fica bastante óbvia na alegoria sobre a árvore da vida e a mulher sem umbigo. Desta forma, devo insistir na perspectiva que venho insinuando: a insignificância pode não estar refletida diretamente naquilo que foi dito, mas no que não foi. Assim como, essa insignificância, talvez, não se proponha a estar vinculada, necessariamente, ao que não é importante para cada personagem.

Decretando-me no direito de usar do mesmo expediente de Kundera, finalizo concluindo “em aberto” essa questão. Se a insignificância e importância das coisas da vida são tão variáveis para cada um, igualmente, a decisão sobre o que se disse insignificante ou não na festa da insignificância virá muito mais da perspectiva individual e única de cada leitor, do que daquilo que, de fato, se encontra no texto. Portanto, se a mulher está sendo deliberadamente relegada a uma situação de insignificância no contexto do livro ou não ou, mesmo, se o papel e lugar da mulher no livro fez parte das escolhas de Kundera sobre o lugar de cada personagem nesse jogo insignificância X importância me parece estar mais ligado ao significante de cada leitor para o lugar de o que é essencial ou não. E, talvez, o autor tenha propositalmente dado mais importância à leitura de cada um do que ao que ele pudesse de fato apresentar como o que é a insignificância do mundo.



KUNDERA, Millan. A festa da insignificância. 2013.

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