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  • Foto do escritorRegina Miranda

RESENHA "SILENCIADAS"

Atualizado: 8 de ago. de 2023

Muito se tem falado que vivemos em uma época de polarização do discurso. “Furar a bolha” exige intencionalidade, força de vontade e persistência. O advento das redes sociais poderia sugerir uma interação maior entre as pessoas e a facilitação de um diálogo; mas os algoritmos e a tendência de cada um pelo viés de confirmação relativizaram essa suposta democratização que as redes poderiam trazer. É nesse contexto que Silenciadas, filme de Pablo Agüero que estreou na Netflix em março desse ano, apresenta uma possibilidade de exercício de escuta. Normalmente, a História é contada pelos vencedores. A versão que fica nunca é a do subjugado, do perseguido, do oprimido. Este filme busca dar essa voz a elas, cuja voz foi calada sem misericórdia. As bruxas.

Embora os líderes da inquisição costumassem escrever a respeito de sua “missão” e guardassem documentos acerca do resultado observado por eles nos interrogatórios, como forma de, supostamente, manter um guia de luta contra o diabo, o que seriam as confissões de próprio punho das mulheres, documentos e cartas que pudessem ser de autoria das vítimas da caça às bruxas foram eliminados. Assim, não temos um acervo que possa nos mostrar com abrangência a versão delas sobre o que ocorreu. Quando detidas sob acusação de bruxaria, essas vitimas eram afastadas da comunidade e, mesmo, da própria família. Incomunicáveis, as únicas palavras das condenadas a ficar para posteridade foram as supostas confissões (que, normalmente, elas apenas assinavam, não redigiam). Temos o martelo das bruxas, que nos dá uma boa noção da ideologia por trás da perseguição. Mas o que pensaram essas mulheres, quais seriam suas últimas palavras, o que elas teriam a dizer a respeito de suas prisões? Não sabemos.

Diferentemente de outras produções que tematizam esse período sombrio da idade média, Silenciadas mantém o foco narrativo colado às bruxas quase que o tempo todo. O filme começa mostrando um trecho da rotina das garotas, envoltas em afazeres domésticos e sonhando com seu futuro. As provocações de umas a outras já dão um “gostinho” da sororidade entre elas que o filme traria posteriormente. Elas distraem-se conversando e questionando umas às outras sobre paixões e interesses como quaisquer adolescentes. Já nesses primeiros minutos do filme ocorre a prisão. E aqui já quero chamar atenção para a diferença de tom que esse filme traz _ com relação a outros do gênero _ pois não retrata as garotas como ingênuas e, sim, mostra mulheres conscientes do que significava a presença daqueles guardas, tentando lançar mão de algum meio de fuga. Ou seja: não foi sem resistência que as bruxas foram à fogueira. E esse é um dos motivos da própria perseguição, da caça às bruxas: a resiliência das mulheres.

Então logo no início do filme, estamos acompanhando essas meninas dentro da cela. E ficamos com elas dentro dessa cela a maior parte do tempo. Dali acompanhamos a tortura psicológica vivida por elas, sem saber o que se passaria com cada uma. O terror sofrido por elas ao perceberem que quem era levada pelos guardas passava por sessões de tortura no interrogatório. É esse olhar expectador colado a elas que beneficia a voz dessas vítimas. Vemos o decorrer da história a partir dos olhos delas e a voz dessas garotas é que fica ecoando após o fim do filme.

Estando na cela, a espera da decisão do inquisidor e conversando umas com as outras, elas buscam um meio de escapar ao destino da fogueira, enquanto confortam-se umas às outras. Desde canção de ninar para a mais jovem _ de fato uma criança, ainda _ até os cuidados com os ferimentos, elas fortalecem os laços que as unem e isso se intensifica quando Ana tem a ideia de um estratagema para uma tentativa de fuga. Todas topam fazer seus papéis nesse “teatro” em busca da liberdade. Aqui, também, há um diferencial nesse filme, quando uma amiga que estava em liberdade arrisca-se vindo até a prisão para avisar às amigas sobre a avó delas. Ela demonstra coragem e a sororidade que, de fato, existiu entre as acusadas na vida real na tentativa de sobreviver. Tratava-se da sobrevivência não apenas de uma ou outra mulher, mas da sobrevivência de um modo de vida que estava sendo dizimado. Por isso, muitas julgavam que valia a pena arriscar suas vidas em tentativas de salvar mulheres e parar o genocídio que acontecia. Ou seja: essas bruxas não se entregaram docilmente ao que foi a opressão de sua cultura através do holocausto causado pela inquisição. Isso também fica latente na cena em que o padre (mesmo ficando do lado da Igreja, de fato) fala em língua basca com Ana na esperança de lhe dar dicas de como se sair melhor do interrogatório, ou seja, sair menos ferida. Esse trecho, em especial, é muito significativo pois, simbolicamente, traz essa resistência do povo, na tentativa de manter sua cultura que estava sendo extirpada por aquele movimento de caça às bruxas. Essa união, principalmente das mulheres, é algo que fica de fora de outras produções que retratam esse mesmo período.

A importância de mostrar essa resistência das vitimas e, mais, a escolha pela sequência com a criação de um estratagema em que as garotas fingem um Sabath se reflete nessas opções de voz e silenciamento. As moças precisam se calar diante da tortura para tentar mostrar-se inocentes. Se gritassem, era prova da presença do diabo. Se falassem em sua língua original, também era prova da influência nefasta dele tentando enganar os “representantes de deus na terra”. Então quando o padre se solidariza com a garota, por ser “uma das suas” e, a partir disso, arrisca falar em basco para ajudá-la e, mais ainda, quando ela tem a ideia de fingir um Sabath, entregando ao inquisidor o que ele queria no fim das contas, isso é um levante da voz desses oprimidos. Ela toma a narrativa e o que se segue é ela dominando essa narrativa e, de fato, conduzindo o inquisidor no interrogatório. Essa escolha por mostrar a acusada como uma mulher inteligente e capaz de tomar o protagonismo diante de uma autoridade masculina e religiosa, também reflete essa intenção de dar voz ativa às vitimas. E, nessa voz, descobrimos que o acontecimento que deu origem a acusação de bruxaria era nada mais que ritos naturais e uma tentativa de manutenção da própria cultura ancestral por parte das garotas. Temos, no filme, portanto, a prevalência de uma visão de pluralidade religiosa, em que fica claro que a perseguição dos inquisidores se dava contra qualquer manifestação cultural que não fosse aquela prescrita pelo poder colonizador europeu. Por mais que, em outras produções, isso fique sugerido, estar assim explícito faz muita diferença para esse jogo de silenciar e dar voz. O que leva parte das pessoas a temer tais rituais é a ignorância sobre eles. E, claro, no caso da maioria dos executores da caça às bruxas, não havia medo dos atos ritualísticos em si e, sim, do poder de resistência que eles significavam.

Outro ponto muito bem explorado no filme é o fato de o inquisidor deixar-se levar pelo desejo, pela luxúria, a perversão e a curiosidade mórbida. Ele deseja a mulher e deseja o conhecimento. Há cenas em que fica óbvio o desejo sexual pela garota e, também, o sadismo do processo de inquérito. Da mesma forma como fica óbvia a frivolidade dele, que se deixa levar completamente pela curiosidade de descobrir como seria o ritual "demoníaco" do Sabath. Sua curiosidade é repleta de perversidade e luxúria; e isso fica muito claro nas cenas finais, em que as garotas encenam o ritual e ele, totalmente envolvido nos ritos, entrega-se ao que seria um culto ao próprio diabo que ele alega combater. Desta forma, o filme escancara a hipocrisia do processo como um todo, já que, em momento algum, o inquisidor é acusado ele mesmo de “ceder ao diabo” mesmo atendendo a todos os pedidos para encenação do ritual e tendo participado ativamente dele.

Em todos esses momentos, a voz que prevalece é a das bruxas. Elas conduzem o fio da narrativa e nós as acompanhamos em seus momentos de desespero, de luta e resistência, de busca por liberdade, de ódio e, até mesmo, em poucos momentos de confraternização alegre que conseguem arrancar de si mesmas na cela compartilhada, como quando ensaiam a “musica satanista” e quando celebram o lindo vestido de Ana. Esse foco narrativo colado a elas, mais especificamente à Ana, dá esse tom ao filme, de relato das bruxas. Relatos que não temos de fato, pois elas foram silenciadas na História. Esse silenciamento, através da queima de qualquer resquício das bruxas, até mesmo de suas histórias, foi parte da estratégia de dominação dos colonizadores, dominadores europeus. Os judeus guardam relatos de vitimas do seu holocausto, bem como imagens e outros registros históricos como forma de resistência e prevenção de que não torne a acontecer. Não temos museus que tragam essa história das bruxas, do holocausto, do genocídio ocorrido. Portanto, um filme que propõe esse espectro, ainda que ficcional _ a história é ficção mas bem poderia ter sido real _ da história da caça às bruxas, é um dos meios de que dispomos para buscar reparação histórica para essas vítimas, propositalmente caladas por seus algozes, os homens. Uso o termo “bruxas” para referir-me às personagens neste último parágrafo para reafirmar, aqui, o que tenho dito em outros momentos. Não é necessário negar a essas mulheres a alcunha de bruxas. Se ser bruxa na idade média era ter o hábito de dançar em meio à natureza, cultuando-a _ em detrimento do culto ao deus cristão que era imposto a elas _ então essas mulheres eram de fato, bruxas. Mas ser bruxa não pode continuar a ser visto como sinônimo de negatividade. Ser bruxa é, justamente por conta da inquisição, ser vítima da perseguição e da imposição de um culto único. Ser bruxa é ser resistência à intolerância religiosa. E a percepção desse fato parece ser o que leva a escolha do final do filme. Não importa se as garotas voaram ou não. O que o final do filme nos conta é que, mesmo elas tendo assumido ao final a alcunha a elas imposta, de bruxas, elas continuam sendo as heroínas da narrativa. As bruxas são as vítimas da História da idade média e são as protagonistas e heroínas desse filme; sua voz ecoa em nós após o fim do filme dizendo: “se querem-nos bruxas, pois então somos bruxas e como bruxas morreremos, resistindo e lutando até o fim pela nossa verdade, pela nossa liberdade, pelo nosso direito de escolha”. Silenciadas é, assim, um exercício de escuta dessas vozes silenciadas na História: as vozes das bruxas, vítimas da opressão do Estado e da perseguição da Igreja, através da intolerância religiosa. Ser contrário a intolerância religiosa hoje, portanto, exige abraçar essa escuta e aceitar a verdadeira identidade das bruxas reais de nossa História: vítimas e resistência.


Silenciadas:


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